2. Aprofundando a relação entre pobreza e currículo

Entraves para avançar na relação currículo-pobreza

A concepção de conhecimento e de cultura sintetizada nos currículos está marcada por uma noção linear do tempo e do espaço, que culmina em uma visão desenvolvimentista4, pela qual há uma promessa de progresso por meio do processo escolar. Ainda de acordo com essa visão, a escola tem a tarefa principal de formar profissionais para o mercado de trabalho e, para isso, acaba por desenvolver nas pessoas uma mentalidade utilitarista e produtivista. Isso significa que a escola sustenta um discurso de que ela mesma seria um rito de passagem capaz de romper o círculo vicioso da pobreza. Assim, o sistema educacional pretende estimular que se mire o futuro, que se tenha vontade de avançar, progredir, controlar o espaço e o tempo, acelerar a mudança.

Na cultura pedagógica e curricular vigente, o caminho escolar teria como ideal apropriar-se do conhecimento, da ciência e das tecnologias; reconstruir outros espaços, outros tempos e outras formas de pensar e de trabalhar, com valores de esforço, superação e empreendedorismo. Logo, esses currículos não dialogam com os(as) pobres ou com a pobreza, nem para entendê-la nem para que os(as) pobres compreendam sua própria condição. Os currículos têm ignorado a pobreza e os(as) pobres como coletivos, e isso resulta exatamente no oposto do que se promete, pois contribui para manter os indivíduos atolados em formas de viver distantes.

A partir desse entendimento linear, os(as) pobres são submetidos desde crianças a uma pressão permanente para entrar no percurso escolar e avançar com êxito, como condição para sobreviver, até na pobreza extrema. Essa visão sequencial e progressista, que exige das famílias e das crianças-adolescentes pobres esse estado de permanente tensão por acompanhar currículos, percursos seletivos para sair da pobreza, termina operando como um círculo mais fechado do que o círculo da pobreza. Esses currículos se fecham para a maioria dos alunos pobres, negros, das periferias e dos campos, condenados a reprovações e repetências segregadoras. A visão desenvolvimentista entende que, enquanto os(as) pobres, desde crianças, não aderirem a essa concepção linear e progressiva de desenvolvimento que os currículos lhes oferecem, continuarão atolados no círculo fechado da tradição, do misticismo, da ignorância, causadores de sua condição de pobres.

Essa visão traz e impõe aos(às) pobres uma interpretação de sua condição de pobreza. Assim, seriam pobres porque supostamente ignorantes, analfabetos(as), irracionais. Às crianças e aos(às) adolescentes pobres que chegam às escolas é oferecida, então, a promessa de libertação da pobreza pela escolarização, pela aprendizagem exitosa do currículo.

As grandes expectativas depositadas sobre a educação são, muitas vezes, condicionadas a um pensamento que deposita na educação a solução para todos os males, com o cumprimento bem-sucedido de um percurso curricular que, hipoteticamente, tem o poder de libertá-los da circularidade da pobreza ou do pensar irracional, ignorando a necessidade de mudança das relações sociais que produzem a pobreza. Na condição de professores(as) e gestores(as) da educação envolvidos com o Programa Bolsa Família, temos, inclusive, de questionar o monitoramento puro e simples da frequência. Será que essa atividade, se restrita à simples inserção de dados de frequência, sem conhecimento sobre as vivências concretas dos(as) alunos(as), não corre o risco de se tornar uma mera reprodução dessa visão sobre a pobreza como uma deficiência moral e cultural a ser superada pela apropriada inserção dos conteúdos curriculares nas vivências de pobreza? Precisamos estar atentos à essa questão.

Visões do currículo e do pensamento pedagógico voltadas a estudos sobre os determinantes estruturais que produzem a pobreza têm buscado desconstruir esse papel miraculoso da escolarização como descondicionante certo da situação de pobreza. Essa esperança de saída da pobreza pela via da escolarização acaba cumprindo o papel social e político de ocultação ou secundarização das causas sociais e econômicas determinantes. Essa camuflagem dos determinantes estruturais e essa crença no papel prodigioso do percurso escolar carregam conhecimentos falsos para as vítimas da pobreza. A ênfase na escolarização enquanto remédio definitivo contra a pobreza tem impedido a inserção nos currículos de conhecimentos que tratem sobre os determinantes da pobreza, tem negado a milhões de alunos(as) pobres o direito a conhecimentos sérios e aprofundados sobre sua condição.

Dados mostram que os(as) filhos(as) de famílias pobres com diploma de Ensino Fundamental e até Médio continuam morando nas favelas e nas vilas, submetidos(as) a empregos precarizados, ao subemprego e ao desemprego, permanecendo tão pobres quanto seus pais analfabetos ou semianalfabetos. O padrão de desenvolvimento concentrador da renda, da terra, do solo, do poder reprodutor da pobreza é mais forte do que a elevação de alguns anos de escolaridade. Isso põe em xeque a ilusão de que, pelo domínio das habilidades escolares em percursos exitosos, os estudantes sairão da pobreza. Alunos(as) pobres têm direito a conhecimentos que contradigam essa promessa irreal.

É a escolarização um caminho garantido de saída da pobreza?

É comum a associação do aumento do número de anos de estudo formal escolar com o acréscimo da renda do trabalho. Pesquisas indicam esse fato associando a melhora da escolarização em termos de anos de estudo com a formação de uma mão de obra mais qualificada e, portanto, melhor remunerada. É o que indicam, por exemplo, pesquisas do Instituito de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a partir dos dados obtidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2012. Como indica o gráfico, há uma tendência do aumento da renda conforme crescem os anos de estudo:

Figura produzida pela Equipe de Criação e Desenvolvimento com base em IPEA (2013, p. 11, tabela 1).

No entanto, é preciso examinar com cuidado essa generalização estatística que sustenta o discurso de aumento da escolarização vinculado automaticamente ao incremento da renda. Embora a educação escolar possa contribuir para um aumento geral na renda, ela não é o único fator em jogo, e nem sempre o acréscimo dos anos na escola resulta em uma melhora na condição econômica.

A associação automática muitas vezes feita entre aumento dos anos de estudo e aumento da renda precisa ser vista com muito cuidado.

Alguns casos nos fazem refletir de maneira crítica sobre essa questão. A antropóloga americana Janice Perlman realizou um extenso estudo do caso de favelas no Rio de Janeiro que, embora não ofereça uma resposta generalizante sobre a pobreza no Brasil, levanta questões interessantes ao apresentar os casos. A pesquisa visou obter respostas que revelassem "[...] como padrões de contexto, atitudes, comportamentos e sorte contam na luta para superar a exclusão e a desumanização da pobreza.” (PERLMAN, 2010, p. 15, tradução nossa). Ela investigou, em uma pesquisa realizada em duas fases ao longo de quase 40 anos, a favela da Catacumba, na zona sul do Rio de Janeiro, a de Nova Brasília, na zona norte, e uma área que abrange três favelas e cinco loteamentos em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

Na primeira fase da pesquisa, realizada entre 1968 e 1969, ela viveu seis meses em cada área e investigou 250 moradores entre 16 e 65 anos de cada localidade, combinando questionários, entrevistas abertas, relatos de trajetórias de vida, análise de dados do Censo e outras fontes.

Na segunda fase, realizada entre os anos 2000 e 2008, Janice Perlman retornou aos locais pesquisados anteriormente. Desses, a favela da Catacumba – antes localizada às margens da lagoa Rodrigo de Freitas, hoje uma das regiões mais caras do Rio de Janeiro – havia sido remanejada para um conjunto habitacional; Nova Brasília passou a fazer parte do Complexo do Alemão; e as comunidades de Duque de Caxias continuam figurando entre as mais pobres do estado do Rio de Janeiro.

Em seu retorno, Janice conseguiu localizar 41% dos entrevistados originais e expandiu sua pesquisa, investigando também as trajetórias dos filhos e netos dessas pessoas, bem como uma nova amostra de moradores.

Nas diversas análises realizadas pela antropóloga em torno da questão da mobilidade social intra e intergeracional, ela constatou algo curioso: o aumento generalizado da escolaridade na sociedade brasileira, embora tenha contribuído para um crescimento geral da renda gerada pelo trabalho, deu-se em uma proporção muito menor para os moradores das favelas cariocas analisadas. O gráfico a seguir, elaborado pela autora a partir dos dados do Censo do ano 2000, indica claramente a desigualdade.

Figura produzida pela Equipe de Criação e Desenvolvimento com base em PERLMAN (2010, fig. 9.3, p. 230).


Esse é um exemplo explícito de que o simples aumento da escolarização não necessariamente significa uma redução da desigualdade, embora seja capaz de majorar a renda. Ao contrário, o gráfico indica o aumento persistente da desigualdade de renda mesmo com a melhora na escolarização.


Mas por que isso acontece? Segundo Janice, boa parte da explicação para o fenômeno está no preconceito social que assola o morador da favela, constantemente associado à criminalidade; além disso, apesar do aumento substancial da escolaridade, a estrutura econômica continua reservando os empregos mais precários – quando não o desemprego – para boa parte dessas populações (PERLMAN, 2010). Veja o que diz a antropóloga na entrevista para a iniciativa The Growth Dialogue (2014): 

-Vídeo-
Janice Perlman, em The Growth Dialogue (2014) 

Assim, apesar de a educação cumprir um papel importante, sua ação não opera milagres. Uma série de outros fatores socioeconômicos influenciam a mobilidade social, e o conhecimento sobre esses fatores é algo a que os alunos e as alunas pobres de nossas escolas têm direito.

Para saber um pouco mais sobre Janice Perlman e suas pesquisas, acesse a entrevista na Revista Cantareira e a entrevista na Folha de São Paulo.