4. Os currículos e as experiências de espaços precarizados 

A chegada de milhões de crianças, adolescentes, jovens e adultos às escolas, carregando vivências de ambientes precarizados, pressionam os currículos a repensarem os conhecimentos sobre o espaço. Nas concepções de espaço predominantes nos currículos, nem sempre há lugar para essas vivências tão fragilizadas dos lugares da pobreza. As noções que os currículos atuais privilegiam são genéricas, globais, distantes da diversidade de vivências do espaço, da diversidade de coletivos sociais, ou seja, sem sujeitos concretos. Nesse modelo, predomina o estudo dos ambientes por recortes administrativos (municípios, estados, nação), regiões (Norte, Nordeste, metrópole, cidade, campo), regiões de produção (agrícola, pecuária, leiteira, industrial), e não há destaque para os espaços reais advindos das ações humanas. Por esses motivos, os currículos necessitam de constantes revisões, para abarcar todas as multiplicidades de vivências.

A presença de vivências humanas tão diversas e de espaços tão precarizados deixa exposto que, nesses ambientes, milhões de educandos(as) reproduzem suas vidas de maneira permanente. Assim, os indivíduos vão construindo os sentidos de suas existências, seus valores e identidades. Trazer lugares e territórios da pobreza para os currículos da Educação Básica significará, portanto, privilegiar uma questão nuclear: os espaços da cidade e do campo pertencem a quem? Essas áreas são apropriadas por quem? Os espaços nobres, valorizados, são apropriados por que grupos sociais? E a que outros grupos pertencem os ambientes precarizados?

A produção e a separação dos espaços não obedecem a processos espontâneos, mas a decisões políticas, econômicas e mercadológicas. O padrão de poder de dominação e subalternização é determinante nos processos de apropriação e desapropriação da terra, de sua valorização, da precarização das centralidades na organização dos serviços públicos. Esse padrão de poder determina a lógica – mais política do que técnica – do planejamento urbano e das normas, da opção por projetos de campo, de cidade, de serviços sociais etc.

Casas marcadas no Morro da Providência

A seguir, você verá o documentário Casas marcadas, que aborda o tema das remoções no Morro da Providência (RJ), a favela mais antiga do Brasil. A partir de depoimentos dos moradores da comunidade, o vídeo mostra como suas vidas são afetadas pelas ações na construção do Teleférico da Providência, parte do Programa de Urbanização Morar Carioca da Secretaria Municipal de Habitação. Ao contrário da promoção feita acerca da construção do teleférico, cujo discurso gira em torno de uma melhoria, os moradores demonstram que não são beneficiados significativamente. O processo de expropriação atinge-os profundamente e os mantém à margem do crescimento e do progresso pretendidos com essa obra.

Paralelamente, o vídeo traz cenas da construção da Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1944 no centro da cidade, mostrando como a história se repete.

A produção recebeu o prêmio de Menção Honrosa no 12º Festival Internacional de Cinema de Arquivo do Recine.

-Vídeo-
Documentário Casas marcadas (2012), dirigido por Adriana Barradas, Alessandra Schimite, Ana Clara Chequetti, Carlos R. S. Moreira (Beto), Éthel Oliveira e Juliette Lizeray.

Para obter informações mais detalhadas sobre os casos de remoção no Morro da Providência, leia a Carta Aberta à População do Rio de Janeiro, escrita pela Comissão de Moradores da Providência e pelo Fórum Comunitário do Porto.

A presença de tantas crianças, tantos(as) adolescentes e jovens-adultos(as) pobres vindos de espaços de pobreza nas escolas obriga os currículos a superar concepções e tratos genéricos do espaço e a destacar esses processos sociopolíticos de apropriação e segregação dos espaços do viver. Os currículos terão de garantir aos coletivos condenados à pobreza o direito a uma análise social da produção dos espaços de miséria em que estão jogados e da forma como esses ambientes são utilizados para perpetuar a segregação dos sujeitos. Embora não haja a inserção desse tema nos currículos de modo geral, já existem coletivos docentes que dão centralidade às disputas pela apropriação do solo e da terra, tanto na cidade como no campo. Essas lutas estão na raiz da concentração da riqueza e da produção da pobreza.

Em sua diversidade de manifestações culturais, os(as) pobres revelam a capacidade de uso e reapropriação dos espaços-tempos do seu sobreviver. Essas permanentes tentativas de se apoderar do lugar, de torná-lo mais íntegro e suportável, conferem um valor pessoal, coletivo e familiar aos espaços-tempos de pobreza. Observa-se que, quanto mais os ambientes forem desvalorizados no mercado, maiores serão os esforços dos coletivos pobres de recuperá-los para seus(suas) filhos(as). Nesse sentido, as mães têm um papel central na dignificação dos espaços de pobreza onde são segregadas suas famílias.

Assim, tornar os espaços-tempos da pobreza mais adequados é um dos valores determinantes da cultura popular levado às escolas. Os sujeitos pobres aprenderam que vivem em ambientes de pobreza, porém em meio a um persistente empenho da comunidade em ressignificá-los. Essa lição foi aprendida, sobretudo, da diligência materna, pois eles mesmos, desde crianças, tornam-se senhores desses espaços e dignificam-nos ao ajudar a família. É provável que muitos(as) desses(as) jovens, adolescentes e crianças colaboraram de alguma forma nesse processo, cooperando nos afazeres de casa, trabalhando para completar a renda familiar ou voluntariando-se em mutirões por melhoria do lugar, da casa, do barracão. Podem até ter participado de ações coletivas, de movimentos sociais em lutas por teto, transporte, água, luz, esgoto, coleta de lixo, asfaltamento das ruas, escola, posto de saúde etc. Fazem parte, portanto, dos processos múltiplos de reapropriação e dignificação dos espaços-tempos da pobreza de que são sujeitos desde crianças e, por meio deles, transformam-se em produtores(as) de outros valores colados às suas vivências.

Voltemos à ideia inicial de que crianças e adolescentes trazem usos, apropriações e ressignificações dos próprios espaços – expropriados e reapropriados, desvalorizados e revalorizados – e, com isso, pressionam para que os currículos deem centralidade ao estudo do tempo-espaço vivido por eles(as). Dessa forma, eles(as) reivindicam que os currículos priorizem estudos concretos do tempo-espaço, com vivências reais de sujeitos igualmente palpáveis, deixando de lado estudos genéricos e abstratos que tratam de sujeitos hipotéticos.