1. Infâncias e juventudes em vivências de pobreza

Menino tão ali, vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantorio? Prum instrumento? Canta, tá aprendendo; pega, toca, tá aprendendo.[…] Vai assim, no ato, no seguir do acontecido. (SOUSA [CIÇO] apud BRANDÃO, 1984, p. 7 et seq.)

Quem são as crianças, os(as) jovens e os(as) adolescentes em situação de pobreza no Brasil? Que olhares são construídos sobre eles(as)? Que lugares eles(as) têm ocupado nas políticas educacionais? Que vivências têm experimentado?

 

As concepções de infância e juventude em vivências de pobreza como construção social

Elaborar uma definição de infância e de juventude não é uma tarefa fácil. Isso porque, por um lado, há uma dificuldade em construir uma definição que consiga abranger a heterogeneidade do real e, por outro, é possível observar que algumas representações sobre esses segmentos estão presentes no imaginário social, interferindo na sua compreensão. Nesse sentido, as interpretações sobre o que é ser criança e ser jovem são categorias socialmente produzidas, que adquirem significados particulares em contextos históricos, sociais e culturais distintos.

Por isso, entendemos que é fundamental considerar, ao se pensar as idades da vida, as relações entre as dimensões históricas, culturais, sociais e biológicas, pois, se há características universais (dadas pelas transformações biológicas) que acontecem numa determinada fase, é muito diversificada a forma como cada sociedade – e no seu interior, cada grupo social –, em um momento histórico determinado, representa e convive com essas transformações.

Dentro dessas representações, é possível identificar duas imagens amplamente generalizadas em nossa sociedade: as homogeneizadoras, que assumem que crianças e jovens têm características, valores, desejos, necessidades e condições de vida iguais e, portanto, torna-os homogêneos; e as estigmatizadoras, que consideram naturais determinados estigmas sobre as crianças e os(as) jovens, ou seja, inatos e comuns nessas fases da vida.

Em qualquer uma dessas visões, não há espaço para a diversidade de realidades vividas por crianças e jovens, que em muito conformam suas identidades. Por isso, como bem ressaltam Dayrell (2003), Sarmento (2003) e Abramo (2005), devemos falar de infâncias e juventudes no plural para não esquecermos as diferenças e as desigualdades que perpassam as suas condições de vida. Assim, a questão que se coloca não é apenas sobre a possibilidade ou impossibilidade de viver a infância ou a juventude, mas sobre os diferentes modos como tais fases podem ser vividas. Nessa perspectiva, a infância e a juventude constituem um grupo social diverso, no qual estão presentes diversas condições tais como a classe, a etnia, o gênero, entre outras, o que implica compreendê-los nas suas diferenças e apreendê-los como indivíduos que têm uma história, que vivenciam diferentes experiências, que são de diferentes origens sociais, com desejos e comportamentos diversos.

Os saberes da experiência

A rua é fonte abundante de vivências para crianças e jovens. Dependendo de sua posição social, a cidade pode se apresentar das maneiras mais variadas. Cada um desses pontos de vista demanda estratégias e conhecimentos diferentes: encontrar o caminho mais rápido é um saber valioso para quem vê a cidade como um lugar de passagem, assim como saber por onde e como se locomover com segurança é valioso para quem a vê como um lugar perigoso. Para aqueles que veem as ruas – entre outras coisas – como um espaço que possibilita a sobrevivência cotidiana, as estratégias para ganhar dinheiro, comer, locomover-se, encontrar lugares seguros para dormir e maneiras de abordar os transeuntes são formas estudadas e experimentadas cotidianamente. Essas formas de conhecimento são exploradas neste vídeo:

-Vídeo-
 

"Bilú e João", dirigido por Kátia Lund, é a quarta parte do filme All the invisible children (2005) –traduzido para o português como Crianças invisíveis –, que conta com outras 6 partes. Cada uma delas é dirigida por um diretor diferente e retrata a realidade de crianças marginalizadas em diversas partes do mundo – China, Reino Unido, Brasil, Montenegro, Itália, Estados Unidos e Burkina Faso.

Em oposição a uma concepção de infância e juventude que considera crianças e jovens simples objetos, passivos(as) de uma socialização orientada por instituições ou agentes sociais, ou como uma folha em branco em que os adultos podem escrever o que quiserem, assumimos a concepção de que eles(as) são atores sociais, sujeitos de direitos e que, como tal, devem ser respeitados(as) e protegidos(as).

Quando falamos de crianças e jovens em situação de pobreza, muitas representações começam a aparecer. No caso das crianças pobres, o assistencialismo e o moralismo são matrizes que as apoiam. Sob o olhar assistencialista, as crianças pobres precisam ser cuidadas, educadas intelectual e moralmente, já que suas famílias – no caso, famílias pobres – “são desestruturadas, não têm educação”. Assim, a ideia do cuidado com a infância pobre nasce impregnada de um olhar autoritário e negativo; e, por esse motivo, durante muito tempo, as creches foram vistas como instituições de caridade, mantidas muitas vezes por igrejas ou por famílias abastadas que se sentem na obrigação religiosa de salvar essas “pobres crianças de seu destino”.

No caso das juventudes pobres, a matriz que orienta as representações sobre elas é outra, mas não menos autoritária: a punitiva. Taxados de violentos, baderneiros, muitas vezes até de criminosos, a solução encontrada pela sociedade para lidar com jovens pobres é a correção, através de punição, inclusive a penal. Dessa forma, os problemas vividos pelas juventudes pobres se transformam em caso de polícia, e os órgãos criados para resolvê-los – como o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), em funcionamento entre 1940 e 1964, e a Fundação do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), criada em 1964 – assemelham-se a uma prisão, com um caráter marcadamente repressivo. 

É importante ressaltar que o termo “menor” era a denominação usada somente para filhos e filhas das famílias de baixa renda, os pobres, pois os economicamente favorecidos eram chamados de crianças e adolescentes. Somente com a Constituição de 1988 e com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é que se consagraram direitos específicos da criança e do(a) adolescente, os quais passaram a ser considerados sujeitos de direitos. Navegue pelo slideshow abaixo para conhecer um pouco sobre o processo histórico de conquista desses direitos:

Mudar a legislação foi um passo importante para garantir direitos a crianças e jovens em situação de pobreza, mas não pode ser o único. Nesse sentido, como afirmam Dayrell (2003) e Arroyo (2004), é necessário quebrar imagens que tendem a analisar e compreender as crianças e os(as) jovens pelo que eles(as) não são, ressaltando as características que lhes faltariam para corresponder a um determinado modelo de ser criança ou jovem. Essa visão impede uma apreensão dos modos pelos quais crianças e jovens, principalmente das camadas populares, constroem as suas experiências, e impossibilita que se capte suas demandas.

Desse modo, as condições de vida das crianças e dos(as) jovens pobres no Brasil deixam à mostra as desigualdades sociais e a falta de concretização de direitos garantidos por lei, como viver com dignidade ou estudar em uma escola de qualidade.  O que podemos observar é que inúmeras crianças e jovens de origem popular vivem hoje nos “limites da sobrevivência”, colocando em descoberto a grave desigualdade social presente em nossa sociedade. Como nos coloca Arroyo: “Diante da barbárie com que a infância e a adolescência populares são tratadas, o primeiro gesto deveria ser ver nelas a imagem da barbárie social. A infância revela os limites para sermos humanos em uma economia que se tornou inumana.” (ARROYO, 2004, p. 17).

Criança morta, um dos painéis da série Retirantes, de Cândido Portinari (1944).

Dentro de uma mesma cidade e amparadas pelas mesmas legislações e políticas, diferentes crianças e jovens não têm acesso aos mesmos direitos. E quando têm, como é o caso do acesso à escola, direito quase universalizado no país, isso se dá em condições bastante desiguais. Uma das maneiras que temos de abordar a questão da pobreza no Brasil é utilizando os dados gerados pelo Programa Bolsa Família, que busca aliar a política de transferência de renda às famílias com a garantia do direito à educação de crianças, jovens e adolescentes em situação de pobreza no Brasil. Portanto, embora nosso assunto não seja o Programa Bolsa Família em si, passamos a seguir por algumas considerações que nos permitem falar sobre a importância desse apoio às famílias pobres para a educação de seus filhos e suas filhas. Navegue pelo infográfico abaixo para continuar a leitura: