Escola: espaços e tempos de reprodução
e resistência da pobreza

O que podemos aprender com os ensinamentos de Ciço? O que ele nos instiga a refletir sobre o papel da escola para as camadas populares, para os coletivos feitos desiguais em nossa sociedade? A primeira ideia é pensar sobre o que significa a palavra educação, que ganha sentidos diversos, como bem destaca Ciço. Educação, para determinadas classes, é sinônimo de escola; mas, para Ciço, proveniente de uma camada popular, é sinônimo de trabalho.

Contudo, o que isso, de fato, representa? É necessário reconhecer que a educação vai além da escola; ela é mais ampla e abrangente. Nossa educação acontece no trabalho, na família, nas rodas de viola, nas Folias de Reis, na luta pela sobrevivência. Acreditar que educação seja sinônimo de escola é desconsiderar processos formativos presentes nas práticas sociais de muitos coletivos que, apesar de pouco escolarizados, são bastante educados. É o saber esparramado ao qual Ciço faz referência, reforçando que nele não há um estudo, mas sim um saber.

Brandão, em seu livro O que é a educação, revela que:

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja, ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. (BRANDÃO, 1985. p. 7)

Ciço também reforça essa concepção quando diz:

Um tipo dum ensino esparramado, coisa de sertão. [...] Então quer dizer que é assim: tem uma educação – que eu nem sei como é que é mesmo o nome que ela tem – que existe dentro do mundo da roça, entre nós. Agora, tem uma – ­essa é que se chama mesmo "educação" –­ que tem na escola. Essa que eu digo que é sua. (SOUSA [CIÇO] apud BRANDÃO, 1984, p. 7 et seq.)

Ciço, assim, faz uma distinção entre educação e escolarização. Ele sabe que, nesse saber esparramado, existe um processo educativo que pode não ser estudo, mas tem uma aprendizagem: "Agora, nisso tudo tem uma educação dentro, não tem? Pode não ter um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que não tenha. Mas se ela não sabia e ficou sabendo é porque no acontecido tinha uma lição escondida." (SOUSA [CIÇO] apud BRANDÃO, 1984, p. 7 et seq.)

Porém, será que essa concepção alargada de educação tem força em nossa sociedade? Ou compreendemos a escola como o único espaço educativo legítimo, entendendo educação como escolarização e tornando invisíveis outros processos educativos? Em sua fala, Ciço também nos diz sobre a escola, denunciando a falta de infraestrutura, de materialidade e de conexão com as experiências culturais dos estudantes das camadas populares. Por isso, Ciço, com muita propriedade, diz a Brandão "que a sua [educação escolar] é a sua e a minha é a sua. Só que a sua lhe fez. E a minha?"

O que significa dizer que a educação escolar de Ciço não é a dele e sim a de Brandão? O próprio Ciço explica:

A professora da escola dos seus meninos pode até ser uma vizinha sua, uma parente, até uma irmã, não pode? Agora, e a dos meus meninos? Porque mesmo nessas escolinhas de roça, de beira de caminho, conforme é a deles, mesmo quando a professorinha é uma gente daqui, o saber dela, o saberzinho dos meninos, não é. Os livros, eu digo, as ideias que tem ali. Menino aqui aprende na ilusão dos pais; aquela ilusão de mudar com estudo, um dia. Mas acaba saindo como eu, como tantos, com umas continhas, uma leitura. Isso ninguém não vai dizer que não é bom, vai? Mas pra nós é uma coisa que ajuda e não desenvolve. (SOUSA [CIÇO] apud BRANDÃO, 1984, p. 7 et seq.)

Ciço apresenta mais um questionamento sobre a cultura escolar, revelando a passividade dos sujeitos diante do conhecimento acadêmico, presente, por exemplo, nos livros didáticos. Mesmo quando as professoras são de origem popular, o conteúdo cultural que elas devem “transmitir” não o é, os materiais didáticos que chegam à escola não o são. Desse modo, nas palavras de Ciço, a escola para as camadas populares acaba sendo algo que ajuda, mas não desenvolve.

Assim, de forma cuidadosa e metafórica, quase poética, Ciço tece uma dura crítica a esse modelo de cultura escolar, chegando a afirmar que, para os pobres, a escola ensina o mundo como ele não é. E, quando Brandão abre a possibilidade de existir uma escola diferente, com um saber pro povo do mundo como ele é, Ciço, mineiramente, desconfia: "Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra quê? Pra quem?" E completa: "Essa eu queria saber como é. Tem?"

Inspirado nas palavras de Ciço, este módulo pretende discutir as relações entre cultura escolar e desigualdade social, buscando analisar as representações sociais sobre as infâncias, adolescências, juventudes e vivências de pobreza no Brasil, e o papel do Bolsa Família na garantia do direito ao acesso e à permanência na escola pública; discutir o papel da escola no processo de reprodução das desigualdades sociais e a luta dos movimentos sociais pelo direito à educação e a uma escola democrática; e examinar práticas culturais emancipatórias a partir de experiências escolares. Com este módulo, esperamos contribuir com a reflexão, tão bem iniciada por Ciço, sobre o papel da escola para as camadas populares, abordando suas contradições, seus desafios, e também seus avanços e suas possibilidades.