2. Desigualdade social, cultura escolar e movimentos sociais

Uma escola que se comprometa com a transformação social

Como já discutido anteriormente, a luta dos movimentos sociais por uma educação democrática colocou em xeque a cultura escolar hegemônica, que “tende a curricularizar, gradear, disciplinar e normatizar saberes sociais, relações e até ciclos de desenvolvimento” (ARROYO, 2000, p. 65).

Assim, os movimentos sociais procuram (re)politizar a escola, entendendo, como Paulo Freire9 (1987), que a educação não é neutra. Nessa perspectiva, uma escola que se comprometa com a transformacão social precisa se posicionar diante das desigualdades sociais, lutando para combatê-las e buscando, junto com os movimentos sociais, construir uma sociedade mais justa e democrática. Para isso, é preciso que sejam repensadas suas práticas, sua cultura e sua relação com a sociedade.

Ao longo da história brasileira, muitos foram os movimentos educacionais que se comprometeram com o processo de transformação social, denunciando desigualdades, injustiças e opressões e propondo uma educação libertadora, mais conectada com a luta dos coletivos oprimidos (FREIRE, 1987).

No início do século XX, algumas décadas após a proclamação da República, o Brasil viveu um momento de mobilização política e cultural em prol da modernização do país e do fim do domínio das elites oligárquicas e conservadoras. Nessa época, concretizava-se a proposta de uma escola pública, gratuita e obrigatória, materializada no que foi denominado “O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”10, escrito em 1932. O documento propunha uma educação para todos, sem privilégios econômicos de uma minoria. A educação era vista como instrumento de reconstrução da democracia, permitindo a integração dos diversos grupos sociais.

Anísio Teixeira11, um dos signatários do documento, além de grande educador, ocupou cargos de gestão no Governo Federal e na Secretaria de Educação do Estado da Bahia, o que lhe permitiu colocar em prática as concepções teóricas da Escola Nova, propondo, por exemplo, a criação da chamada “Escola Parque”, com o objetivo de ofertar aos(às) estudantes uma educação integral, que cuida de alimentação, higiene, socialização, preparação para o trabalho e cidadania.

Escola Parque

No final dos anos 1940, Anísio Teixeira, então secretário de educação do estado da Bahia, pôs em prática sua visão de educação e seu modelo de escola. Ele criou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, conhecido como Escola Parque, na cidade de Salvador. Assistindo ao trecho do documentário Educadores brasileiros - Anísio Teixeira: educação não é privilégio (2007), você poderá saber um pouco mais dessa história.

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Porém, foi no início da década de 1960, período de grande efervescência dos movimentos sociais, que surgiram no Brasil os Movimentos de Cultura Popular, fortalecendo os vínculos entre educação, cultura e transformação social e trazendo, com força, a proposta de uma Educação Popular que:

[...] é popular não porque o seu trabalho se dirige a operários e camponeses excluídos prematuramente da escola seriada, mas porque o que ela “ensina” vincula-se organicamente com a possibilidade de criação de um saber popular, através da conquista de uma educação de classe, instrumento de uma nova hegemonia. (BRANDÃO, 2006, p. 48)

O Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife; o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE); a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, da Secretaria Municipal de Educação de Natal, Rio Grande do Norte; e o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): esses e outros movimentos surgiram em todo o país, aliando arte, educação e cultura com a luta política por um mundo mais justo. Para eles, a educação é vista “como prática da liberdade” (FREIRE, 1979), com uma pedagogia própria, a Pedagogia do oprimido, conforme o célebre livro do autor (FREIRE, 1987).

Clique nas reportagens para ler sobre esses movimentos:

 

Paulo Freire, um dos educadores mais representativos desse momento, entende a educação como um ato político, que exige de todos nós, educadores(as) e educandos(as), um posicionamento a respeito do nosso compromisso social.

Há perguntas que temos que fazer com insistência, que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar, de estudar sem comprometer-se. Como se de forma misteriosa, de repente, nada tivéssemos em comum com o mundo exterior e distante. Para que estudo? A favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo? (FREIRE, 2000, p.37)

E Paulo Freire se posiciona politicamente, contrapondo-se ao que ele chama de educação "bancária", pela qual:

[...] o "saber" é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro. (FREIRE, 1987, p. 67)

Contudo, Freire não apenas critica a educação "bancária", mas também propõe uma educação libertadora, com base no diálogo, o que humaniza o ser humano, na sua concepção:

O diálogo não é um produto histórico, é a própria “historicização”. É ele, pois, o movimento constitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca reencontrar-se a si mesmo num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si mesmo é comunicar-se com o outro. O isolamento não personaliza porque não socializa. Intersubjetivando-se mais, mais densidade subjetiva ganha o sujeito. (FREIRE, 1987, p. 16)

Assim, na pedagogia dialógica de Freire, insere-se sua concepção de educação pela qual “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” (FREIRE, 1987, p. 79).

O pensamento de Paulo Freire ganha força nos tempos atuais, em que a opressão parece ganhar contornos diversos na forma de racismo, homofobia, segregação, exploração sexual, desrespeito aos direitos da criança e do(a) adolescente, exigindo que nós, educadores, nos posicionemos diante dessas opressões.

Paulo Freire, assim, nos mostra a necessidade de nós, educadores e educadoras, termos a “rebeldia” necessária para compreender as estruturas opressoras de nossa sociedade, numa perspectiva macro, e as práticas bancárias em nosso cotidiano, e rebeldia também para romper com essa realidade, em um mundo cada vez mais opressor, mais desigual. (LEITE; OLIVEIRA, 2012, p. 54)

Ele nos faz questionar sobre nossa prática como educadores(as) comprometidos(as) com uma educação democrática. Freire nos indaga: Que concepções de educação defendemos? Para que projeto de sociedade temos contribuído? Como nos posicionamos politicamente em nosso contexto social? A favor de quem e de que educamos? Contra quem e contra quê?

Muitos coletivos de educadores têm respondido a essas perguntas, construindo propostas de educação escolar que se configuram como práticas culturais emancipadoras para os coletivos que delas participam.