1. Cidadania e democracia

Capacidade e voz

As pesquisas sociológica e filosófica sabem, há tempos, que os(as) pobres, exatamente por serem pobres, têm dificuldade de ter voz, isto é, de formular, organizar e, sobretudo, expressar suas necessidades, transformando-as em demandas por justiça. A pobreza os(as) joga, sem piedade, no mundo dos(as) “incapacitados(as)”, uma vez que não lhes foi dado o direito de se capacitarem para exercer a própria voz. Esse fato, per se, constitui a expropriação de sua humanidade. Sem o exercício da voz, não é possível interferir na marcha do mundo. Instala-se, assim, um círculo de fogo que não se pode atravessar, imperando, então, a surdez e o silêncio no âmbito do Estado e das instituições públicas.

Os(as) brasileiros(as) pobres conhecem, historicamente, do Estado brasileiro apenas sua face repressiva e bruta3, que se manifesta, por exemplo, nas prisões e nas torturas de homens e mulheres quando abordados(as) pela maioria de nossas polícias. Veja-se o caso da Claudia Silva Ferreira4, moradora da favela Morro da Congonha, em Madureira, no Rio de Janeiro, que, ao sair de casa para ir à padaria, foi baleada no coração por tiro de fuzil disparado por um policial. Depois, ao ser levada pelos policiais e colocada de modo negligente no camburão, caiu dele e foi arrastada por mais de 300 metros. Veio a falecer.

De modo geral, os(as) pobres não são ouvidos(as) e muito menos respeitados(as). Não se lhes aplica o “direito ao respeito” como um direito civil de cidadania. Georg Simmel, em um trabalho de 1906, denominado O pobre, já se referia ao fato de os(as) pobres somente serem reconhecidos(as) pelo Estado na condição de “assistidos(as)” e nunca como sujeitos dotados de vontade própria.

Ainda hoje, a remoção de populações pobres de áreas urbanas valorizadas é, muitas vezes, feita sem considerar a vontade dessas pessoas. Fotografia de Maria Objetiva (2013), na ocupação Tupã, em Minas Gerais.

Contudo, notemos que, ao longo da história, seu direito à assistência muitas vezes se tornou paradoxalmente seu fardo moral, pois a assistência acaba por ser o alvo das próprias instituições na formação de preconceitos e de violências simbólicas5 infligidas aos(às) pobres. Uma das mais conhecidas se apresenta nas formas de tratamento que são concedidas aos sujeitos dotados dessa identidade: os assistidos.

Comumente, ocorrem os longos silêncios nos guichês de atendimento, a reticência nas respostas aos pedidos de informação, as falas ásperas, o desdém com as dificuldades de entendimento, a informação fragmentada e dúbia, quando não fornecida com linguagem técnica, temperada com desprezo e má vontade. Enfim, a ida dos(as) pobres às instituições, que foram criadas com a finalidade de lhes proteger, torna-se, frequentemente, mais uma de suas descidas aos infernos; descidas que a sociedade reserva àqueles indivíduos que ela própria destituiu de voz pública e política. Como lembra o filósofo Avishai Margalit6, uma sociedade só é decente se suas instituições não humilham seus(suas) cidadãos(ãs).

A voz dos(as) cidadãos(ãs), se impedida tanto de se formar como capacidade humana de se colocar e agir no mundo quanto de se constituir em modo de demandar direitos e prerrogativas, produz sua “morte” civil. A sociedade se acostuma a tropeçar em sua tragédia com “naturalidade”. Há exemplos trágicos dessa atitude de indiferença diante dos(as) pobres ou dos sujeitos de grupos excluídos ou minoritários. Podemos citar, como um desses exemplos, o grupo de jovens de alta classe média de Brasília que, em 1997, ateou fogo no corpo de um índio que dormia em um ponto de ônibus. Um dos homicidas se justificou dizendo: “Ah! Mas era somente um índio!”.

Há, também, exemplos menos abertamente violentos, mas igualmente dramáticos em suas possíveis consequências, como o caso, registrado por nós durante a pesquisa, de uma mulher pobre e analfabeta do sertão alagoano que recebeu uma convocação por escrito, formulada em uma linguagem burocrática e incompreensível por ela, intimando-a a comparecer em determinado dia e hora na prefeitura local, munida de seus documentos, e que, pela incapacidade de ler e entender a carta, acabou perdendo o acesso ao Programa Bolsa Família.

Há quem, diante de casos como esse, estigmatize o analfabetismo da mulher e a culpe pela sua situação, em vez de considerar errada a postura da prefeitura. Da mesma maneira, em nossas andanças pelo Brasil, frequentemente ouvimos funcionários(as) públicos(as) – professores(as), agentes de saúde etc. – que lidavam com comunidades carentes falarem com menosprezo sobre os sujeitos pobres, devido à incapacidade destes de entenderem certas regras ou normas. Esses(as) funcionários(as) esqueciam-se, todavia, de questionar a forma por meio da qual tais regras ou normas eram comunicadas.

 

Impõe-se, por fim, conhecer o modo como a maioria dos(as) brasileiros(as) considera, normativamente, o que é ser um(a) cidadão(ã). Precisamos, antes de formular uma política pública, definir não só quais exigências de cidadania consideramos inegociáveis, mas também quais elementos as instituições e os(as) agentes formuladores(as) das intervenções estatais, que criam políticas públicas, consideram irrenunciáveis como componentes da cidadania e da dignidade de seus(suas) concidadãos(ãs). Estamos nos referindo, efetivamente, às modalidades de intervenção das políticas públicas. Se sua finalidade é se constituir em política de cidadania, seus conteúdos normativos e suas orientações de condução prática não podem deixar de ser prescritivos em relação ao respeito que seus(suas) operadores(as) devem aos(às) cidadãos(ãs).

As instituições são, na verdade, um complexo de normas e prescrições que regulam o comportamento humano de todos os sujeitos envolvidos na execução de uma ação pública. Se isso não estiver destacado na feitura da política pública, mais uma vez o Estado, parafraseando o filósofo Nietzsche, pode se apresentar às pessoas, objetos de sua intervenção, como um dos monstros mais terríveis7.

Outro aspecto, conectado intimamente ao que foi dito até aqui, é que a cidadania supõe a existência de um status social e político em que os sujeitos sociais pertencentes a uma determinada nação, seja por nascimento, seja por opção, estarão submetidos ao ordenamento jurídico de um Estado. Antes de tudo, isso quer dizer que os(as) cidadãos(ãs) são iguais no direito à proteção por parte do Estado. Nessa medida, as instituições públicas têm por obrigação a proteção de sua vida e de sua dignidade. A dignidade paritária é, com efeito, um componente irrenunciável de uma democracia. Dessa forma, a cidadania se constitui em um arcabouço de direitos, prerrogativas e deveres que configura um sistema de reciprocidades determinantes da natureza das relações dos indivíduos entre si e deles com o Estado.

O enraizamento na trama da vida do sistema de reciprocidades coletivas, como sentimento, cultura, sistema de referências a determinados valores morais e políticos, e sua vivência concreta, serão de fato os parâmetros fundamentais do grau de desenvolvimento democrático da sociedade.  

Importa salientar que a cidadania sempre pressupõe um princípio igualitário. Todas as pessoas são iguais em algum nível; por exemplo, todas são iguais em direitos civis, políticos e sociais.

A teoria das gerações de direitos, de T. H. Marshall

Elaborada na década de 1960, a partir da análise da experiência histórica inglesa, a teoria de Marshall ajuda-nos a entender a composição do conceito de cidadania e seus pontos de disputa  os direitos civis, políticos e sociais. Vejamos o que ele disse, ao dividir a cidadania em três partes.

Elementos da cidadania:

CivilPolíticoSocial
"O elemento civil é composto pelos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual. Isso nos mostra que as instituições mais intimamente associadas com os direitos civis são os tribunais de justiça." "Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. As instituições correspondentes são o parlamento e os conselhos do Governo local." "O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas com ele são o sistema educacional e os serviços sociais."

(MARSHALL, 1967, p. 63-64)

Note que se fala em gerações de direitos, pois, segundo observou Marshall, historicamente as conquistas dos direitos de cada aspecto da cidadania pressupõe a conquista do aspecto anterior. Assim, a conquista de direitos sociais pressupõe a conquista dos direitos políticos que, por sua vez, pressupõe a conquista dos direitos civis. Procure refletir se algum desses âmbitos da cidadania é, atualmente, plenamente garantido no nosso País.

Cabe lembrarmos, aqui, um ponto importante na memória da cidadania: ela foi considerada sempre assim? Sabemos que não. Essa igualdade, mesmo no plano puramente jurídico, foi uma conquista das grandes lutas sociais fundadoras da modernidade. Em termos concretos, sua conquista como direito se deu no bojo da Revolução Francesa, de 1789. A partir de então, a cidadania transformou-se em uma potência de inclusão dos indivíduos em um status de igualdade. Devemos, no entanto, recordar que semelhante situação também funcionou como significativa força de exclusão.

Isso se constitui como outro paradoxo que não pode ser esquecido. Grandes parcelas de pessoas das diversas sociedades nacionais tiveram, por muito tempo, sua soberania cancelada. Como isso foi feito? As elites dirigentes criaram diversas cláusulas de exclusão, tal como o não direito do povo de votar nos seus governantes – além do pressuposto, naturalizado durante muito tempo, de que somente os homens tinham o poder de voto. A exigência de certa quantidade de renda para se qualificar como eleitor se constituía como uma das cláusulas excludentes mais conhecidas. A quantia era tão grande que o número de eleitores era mínimo. Só os ricos poderiam votar; ou seja, o que é conhecido como corpo político, como povo soberano, reduzia-se aos ricos.

Veja no infográfico um pouco mais sobre a história do voto no Brasil.

 

No Brasil Imperial do século XIX, muitos fazendeiros ricos eram analfabetos, mas podiam votar porque dispunham da quantidade de renda exigida e eram proprietários de terras e de escravos(as). Importa destacar que a posse da propriedade foi outro fator de exclusão. Somente poderiam ser eleitores os proprietários, de modo que a cidadania permaneceu, por muito tempo, vinculada às propriedades. Eram considerados cidadãos, sujeitos de direitos, apenas os proprietários. O argumento fundamental para isso residia, efetivamente, na ideia de que aqueles que não tinham conseguido a posse de algo permanente no País, como a propriedade da terra ou das fábricas, atestavam sua falta de autonomia e capacidade de escolha, duas exigências fundamentais para se constituírem como sujeitos capazes de votar, de sufragar seus governantes.

No caso brasileiro, pouco antes de ser fundada a República, em 1889, promulgou-se uma lei eleitoral que proibia o voto do analfabeto. Naquelas circunstâncias, isso significava que a maioria do povo estava excluída desse direito. Essa exclusão vigorou até o ano de 1985!

Figura produzida pela Equipe de Criação e Desenvolvimento com base em Ferraro e Kreidlow (2004) e nos dados da PNAD presentes em IBGE (2012).

As grandes lutas sociais pelo direito ao sufrágio universal e a outros direitos dos(as) trabalhadores(as) fizeram sua aparição na cena pública europeia nos anos 30 do século XIX. Custaram sangue e lágrimas dos(as) demandantes. Conquistado o direito de voto, deve ser lembrado que as mulheres permaneceram excluídas desse direito, mesmo sendo protagonistas ativas das lutas sufragistas. No Brasil, as mulheres conquistaram o direito8 de voto apenas nos anos 30 do século XX, paradoxalmente, antes da Inglaterra, pioneira nesse tipo de luta.

A universalização do sufrágio como tendência da modernidade trouxe para a agenda política da cidadania outras conquistas, como os direitos sociais e a ampliação dos direitos civis, que estão em constante questionamento. Isso exige de todos(as) os(as) democratas uma tomada de posição e lutas políticas voltadas à preservação de importantes conquistas democráticas e sociais duramente conquistadas, como o acesso ao bem-estar, à cultura e à educação de maneiras universais.

Essas considerações servem para salientar a importância fundamental da formação de solidariedades fortes e laços sociais consistentes, necessários para garantir grandes transferências de renda; e do apoio decisivo a medidas legislativas verdadeiramente distributivas, indispensáveis à construção e à efetivação de direitos. Para tanto, supõe-se imperativamente a presença ativa do Estado e, consequentemente, dos(as) agentes públicos(as) dispostos a fazerem da cidadania seu núcleo central de atenção.

Os dispositivos legais e políticos postos em movimento exigem tanto qualificadas políticas educacionais embutidas nas políticas de transferência de renda quanto a formação republicana e democrática9 dos(as) responsáveis pela operação de tais políticas.

 

Somente assim, é possível formar novas atitudes e novos valores voltados à cooperação democrática entre os diferentes atores políticos, alargando e aprofundando as expectativas cívicas dos(as) cidadãos(ãs). Cooperação democrática não significa, de modo algum, eliminação da conflitualidade social, mas possibilidades reais de alargamento da base de legitimação do próprio Estado e de suas modalidades de intervenção. Os(as) agentes públicos(as) que operam políticas de cidadania devem agir como pedagogos(as) de um Estado Democrático de Direito10, que se funda, antes de tudo, no respeito à cidadania. Caso contrário, tais agentes podem se converter em formadores(as) de uma consciência de Estado negativa na população-alvo das políticas públicas. Desse modo, tornam-se eficazes agentes da negação da política em sentido amplo e, sobretudo, transformam-se em forças auxiliares eficientes dos sempre presentes coveiros(as) da democracia.