Importa, neste ponto, lembrar que as mulheres ou, de modo geral, outros grupos sociais submetidos a exclusões e à marginalização da vida social – por exemplo, no Brasil, os(as) negros(as) ou os(as) pobres – sofrem, como percebido por Fraser e Honneth (2006), uma exclusão híbrida. Notemos que a exclusão que atinge essas categorias sociais refere-se às várias situações vividas por outros grupos sociais, étnicos e culturais e constituem o que Fraser e Honneth (2006) chamam de coletividades ambivalentes30.
Tais grupos se tornam portadores de traços de exclusão duplos ou triplos, tornando-se vítimas de várias modalidades de marginalização. Essas razões são, com efeito, mais do que suficientes para se compreender a necessidade de se conhecer as singularidades que marcam esses grupos. Assim, as políticas democráticas que visam melhorar suas condições de vida necessitam, imperiosamente, levar em conta suas peculiaridades culturais, advindas de suas experiências vividas das dores da exclusão, por meio de políticas de reconhecimento. Já que essas pessoas foram afetadas de modo profundo pelas exclusões que as vitimam, impõem-se políticas de justiça social que não possuam somente caráter distributivo, mas também sejam acompanhadas de políticas culturais específicas, desenhadas com grande cuidado projetivo. Seus(suas) formuladores(as) e seus(suas) executores(as) têm, portanto, de ser especialmente preparados(as) para fazê-las.
No caso das mulheres pobres e secularmente abandonadas pelos poderes públicos do País, parece claro que necessitam, ainda com mais ímpeto, de políticas públicas desenhadas e voltadas à sua formação para a cidadania, que pode ser simultânea à sua capacitação profissional.
Mulher e filho em Heliópolis, São Paulo (SP). Foto de Paulo Fehlauer (2008).
Em outras palavras, necessita-se ainda, no Brasil de hoje, da política de formação de demandantes de direitos civis, políticos e, sobretudo, sociais. Importa, pois, destacar que só há sentido em falar de políticas públicas de cidadania, se no coração delas estiver gravado profundamente o que se objetiva garantir a essas pessoas: a institucionalização de sua presença cívica.
Não se pode perder de vista que a formação educacional, entre nós, ou é relegada a um segundo plano, ou, quando ocorre, é carente de princípios igualitários sustentadores da cidadania democrática; ou seja, não prepara as pessoas para serem protagonistas da política. Por tudo isso, não há como não observar, por exemplo, que o reconhecimento dos direitos de cidadania das mulheres – sobretudo as que vivem na pobreza extrema – implica, ainda uma vez, no reconhecimento das várias injustiças que as atingem. Tais injustiças lesaram, fortemente, muitas dimensões de sua existência e de suas subjetividades. Exatamente por isso, é necessário que a reparação desse imenso dano moral e social seja feita por meio de políticas públicas específicas de cidadania, com destaque às que atuem, substancialmente, nas estruturas profundas de suas ambivalências como coletividades.
Semelhantes políticas necessitam, por certo, ser formuladas, com vistas a atingir, criticamente, as várias maneiras de formação e difusão de estereótipos, preconceitos, violência e exclusão social que se abatem sobre os grupos segregados. Convém lembrar que as “situações lesantes” revestem-se de múltiplas faces, por exemplo: corporificam-se ontologicamente, ou seja, acabam tidas como essencial do indivíduo. Paga-se, efetivamente, um preço altíssimo por ser mulher e, ainda mais, ser pobre; pior ainda, ser negra ou pertencer a qualquer outro grupo étnico ou sexual. Por pertencer a esses grupos, o indivíduo é submetido a fortes preconceitos reproduzidos, historicamente, em grande escala na sociedade. Não é, com efeito, muito difícil avaliar a profundidade destrutiva das subjetividades das pessoas alvejadas por eles. Nessas coletividades, estão presentes atmosferas, mecanismos de relacionamento social e tipos de tratamento das pessoas pobres (muitas vezes, por parte das próprias instituições públicas), que redobram o sofrimento psíquico e cívico dos seus membros (BELLUZZO, 2014).
Um exemplo contundente dessas circunstâncias de pobreza e sofrimento pode ser encontrado no depoimento de uma mulher moradora de Vila Brasilândia (em São Paulo), mãe adotiva de uma criança vítima de paralisia cerebral. A entrevistada recorrera, desesperada, a uma unidade de assistência situada na região da Lapa, em São Paulo. Em seu testemunho, relata:
“Fui no atendimento da assistência social.... há muitos anos atrás. Minha filha era bebê. A mulher [a assistente social] não me deixou nem falar, eu implorei para ganhar uma cesta básica. Ela falava não, porque faltava um documento da minha filha. Saí de lá arrasada, chorando muito. No ônibus, chorando, abraçada na minha filha, um senhor com dó de mim, me perguntou o que aconteceu. Eu contei a humilhação. Ele falou: 'você precisa voltar lá, volta lá!' No dia seguinte, fui atrás do que faltava. Voltei, a mulher olhou para minha cara, não falou nada e saí de lá com a cesta [de alimentos]. Saí feliz e aliviada. Não tem jeito. Eu tenho uma filha especial, eu preciso!” (BELLUZZO, 2014, p. 212).
Nessa situação, é importante salientar que a agente pública – no caso, a assistente social – provavelmente não se deu conta do que fez a essa mulher. Submetê-la a tamanha humilhação (não direcionar o olhar para ela, não deixá-la explicar, usar tom de voz ríspido) por causa da falta de um documento só pode indicar que as normas e regras de funcionamento da instituição lhe concedem, de alguma maneira, a “prerrogativa” de humilhar seus(suas) concidadãos(ãs) pobres que para lá se dirigem. Infelizmente, isso é rotineiro e generalizado no Brasil.
Reiterando o que foi dito anteriormente, exatamente essas “situações lesantes”, como observamos no depoimento dessa mulher – que experimentou a vida inteira esse desamparo e essa impossibilidade de controlar minimamente a sua própria vida –, são demonstrações eloquentes de como é imperativo desenhar políticas públicas específicas. Em outras palavras, políticas que sejam voltadas à mudança dos paradigmas valorativos da sociedade e de seus(suas) agentes públicos(as) em relação a seus(suas) concidadãos(ãs). Seria, com efeito, o único modo de se começar a alterar, substantivamente, os modos de relacionamento social mais geral com a realidade da pobreza e a multiplicidade de seus aspectos.
A inadequação pode ocorrer e sempre ocorre, na maioria das vezes, devido a uma questão de incompreensão do problema. Isso, normalmente, está ligado à ausência de diálogo entre diferentes saberes e experiências culturais; em outras palavras, à ausência de pluralidade de visões que a magnitude da questão requer para ser compreendida. O mais importante fator – que agrava a incompreensão e torna ainda mais denso o véu da ignorância de especialistas – reside, contudo, na sua incapacidade de escuta e de posse de métodos apropriados para fazê-la. Impera, em geral, uma grande insensibilidade aos processos de destituição de voz pública dos(as) pobres. Pelas razões históricas que foram referidas anteriormente, esse silêncio ensurdecedor se redobra no caso das mulheres em estado de extrema pobreza. Suas vozes foram, de fato, emudecidas na escuridão dos tempos históricos, por processos socioeconômicos e políticos que ainda atuam, fortemente, na sociedade brasileira.
Tais questões dizem respeito aos modos de intervenção pública na realidade desses grupos. Notemos que o paradoxo da intervenção estatal está sempre em questão. Ela pode se constituir em valioso instrumento de auxílio à liberação desses grupos, consolidando a geração de direitos; ou pode se configurar no seu contrário, isto é, converter-se em mais um instrumento de humilhação, rechaço social e desdém dos(as) agentes públicos(as) em relação aos(às) pobres, reforçando estereótipos e preconceitos. Veja-se, por exemplo, a visão estereotipada e preconceituosa de certos(as) educadores(as) sobre a atuação das crianças filhas de bolsistas do PBF na escola. Essas crianças são culpabilizadas por sua “pobreza espiritual” como se fossem adultos(as) calculistas que vão à escola apenas para cumprir um requisito exigido pelo Estado. Isso fica evidente em algumas entrevistas realizadas, por um grupo de autores(as), no contexto de uma pesquisa sobre a percepção dos efeitos do PBF por parte dos(as) agentes educativos(as) (BRANDÃO et al., 2013, p. 215-232).
Cabe lembrar, ainda, que a história brasileira é carregada de exemplos referentes à ausência de cultura cívica dos(as) nossos(as) agentes públicos(as). As entrevistas, mostradas no vídeo abaixo, evidenciam como os(as) pobres são historicamente vistos(as) e tratados(as) pelos serviços públicos em geral. Mais uma vez, a força do preconceito e da ignorância sobre eles(as) comparece de modo duro e desapiedado. São malandros(as), preguiçosos(as) – inclusive as crianças! Não é pouco frequente ouvir professores(as) ou agentes de saúde que trabalham em comunidades pobres referirem-se a essas pessoas em termos pejorativos, geralmente com tom de desdém ou, até mesmo, de desprezo, usando o pronome “eles(as)”, para demarcar sua presumida natureza diferente, em oposição ao “nós” com o qual esses(as) funcionários(as) públicos(as) se identificam.
Ora, estamos diante de uma situação-limite. Se a realidade traçada até aqui não for alterada, como imaginar que agentes públicos(as) destituídos(as) de cultura cívica possam ajudar a promover a presença cívica das coletividades marginalizadas? Significa dizer que estas últimas permanecerão excluídas da esfera pública, inclusive porque os(as) agentes públicos(as) agem para que permaneçam excluídas, na medida em que esses(as) mesmos(as) agentes não são formados(as) para compreendê-las(as), mas, sim, para perpetuar a cultura da exclusão no âmbito do próprio Estado. Assim, suas vozes continuarão abafadas pelo manto do preconceito e da indiferença. O sofrimento moral e psíquico dessas pessoas permanecerá, com efeito, oculto atrás dos comportamentos gelados de muitos(as) que lidam com os(as) pobres.
Em suma, é preciso que se diga: ter presença cívica significa passar por processos mínimos de formação cívica – em sentido profundo do termo –, o que implica experienciar processos de autonomização das personalidades. No caso em pauta, seu sentido principal reside, por conseguinte, na compreensão do significado do que seja uma pessoa mais autônoma nas suas tomadas de decisões sobre sua vida. As possibilidades disso como ganho geral da coletividade são muitas e, via de regra, incomensuráveis, porque, por vezes, intangíveis. É possível, todavia, enumerar algumas, como o aumento do grau de cooperação social ou das possibilidades de intensificação de laços de solidariedade e responsabilidade individual e coletiva. Cabe, enfim, salientar que esse conjunto de qualidades é fruto do aprendizado cívico; não são, portanto, qualidades inatas de ninguém. Aprende-se a fruir da autonomia, começando, por exemplo, por compreender o papel que a renda monetária pode ter para quem dela estava desprovido(a).