O que é ser cidadão(ã)? O que é uma sociedade democrática? Essas duas perguntas exigem respostas que, necessariamente, entrelaçam-se. Esse cruzamento entre cidadania e democracia1 tem uma longa história. Sobre essa relação, o pensamento político se debruça de modo permanente, na tentativa de capturar seus múltiplos sentidos e suas dimensões. Notemos, contudo, que o fato de a democracia ser um conceito que está em contínua disputa política torna complicada essa captura.
Além disso, tal dificuldade ocorre porque o(a) cidadão(ã), como figura histórica e teórica, origina-se de uma intensa luta social dos homens e das mulheres por liberdade e autonomia. Os conteúdos dessas lutas variaram e foram, muitas vezes, redefinidos e recriados em outra luta incessante da humanidade: a definição política e social dos direitos à liberdade e à autonomia. Assim, o campo dessa disputa se amplia ou se estreita tanto no âmbito da narrativa histórica quanto no plano normativo2.
As diversas formas de as sociedades e de suas instituições entenderem a cidadania e, consequentemente, a própria democracia interferem, radicalmente, no estatuto da cidadania como princípio político indispensável à vida democrática. O conjunto dos direitos que compõem o complexo de prerrogativas de um(a) cidadão(ã) e, o que é fundamental, a efetivação concreta desses direitos na vida social são os verdadeiros indicadores do grau de profundidade de uma democracia. Ao fim e ao cabo, a fruição de direitos, o acesso ao bem-estar social e a autonomia de escolhas dos indivíduos querem dizer, em última palavra, que ser autor(a) do próprio destino constitui a verdadeira medida do grau de democratização realizada em uma sociedade.
Convém, por isso, lembrarmos que a existência da cidadania como situação histórica supõe, necessariamente, um complexo de condições políticas, sociais, econômicas e culturais. Por exemplo, se uma sociedade não garante que todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades de acesso ao bem-estar, à cultura e à educação em sentido amplo, tal sociedade apresenta déficits enormes de democratização de sua estrutura social e política. Isso contamina, de forma nociva, o convívio cívico do corpo social, pois o hábito de conviver com a injustiça, o desrespeito e a desigualdade torna todos(as) os(as) habitantes de uma nação embrutecidos(as) e insensíveis à dor do outro.
Notícia de Jornal
Crônica de Fernando Sabino
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
(SABINO, 1997, p. 39-40)
A indiferença diante do destino do sujeito semelhante faz, em termos morais, do cinismo gelado uma forma de sociabilidade. Cidadãos(ãs) que são e foram excluídos(as) do acesso ao bem-estar, à cultura e à educação tiveram seus direitos prejudicados, na maioria das vezes, de forma irreparável. Sua liberdade, em sentido profundo, que engloba capacidade de escolha e decisão sobre sua vida, foi gravemente ferida. Dessa forma, instalam-se as injustiças social, econômica, política e jurídica; e se erigem modos de intervenção das instituições e de seus(suas) agentes públicos(as), fundados na crueldade e na indiferença em relação ao sofrimento dos(as) pobres. “Naturalizam-se”, por assim dizer, os preconceitos e a formação de estereótipos contra esses indivíduos. Com isso, a humilhação institucional infligida aos(às) cidadãos(ãs), por intermédio dos(as) agentes públicos(as), afigura-se como normal.