2. A pobreza, uma questão moral?

 

Tirinha do cartunista argentino Quino (1992), criador da Mafalda. 

Enquanto não se dá a centralidade devida às carências materiais da pobreza, a tendência será reduzi-la a uma questão moral, à falta de valores, a mentalidades primitivas em relação ao trabalho3. Com base nessa visão, os(as) pobres estariam desempregados(as) porque seriam indolentes. É principalmente dessa forma que esses sujeitos têm sido pensados em nossa cultura social: responsáveis por sua pobreza e desemprego. 

Quando se imputa aos(às) pobres a sua condição de pobreza e considera-se que são carentes de valores, passa-se a entrever apenas uma solução: educá-los(as) nos valores do trabalho, da dedicação e da perseverança, desde a infância. Nesse contexto, a tarefa da escola diante de milhões de crianças e adolescentes na extrema pobreza seria de moralizá-los(as) nesses valores, que eles(as) supostamente não recebem das famílias e dos coletivos empobrecidos. A escolarização, então, seria somente um antídoto contra a pobreza ao moralizar as infâncias e adolescências pobres.

A imagem dos(as) pobres como ausentes de valores também é reforçada pela mídia, ao mostrar a pobreza associada à violência e a crimes como consumo e venda de drogas, furtos e roubos. Mesmo as políticas públicas e os programas socioeducativos podem, muitas vezes, carregar uma intenção corretiva e moralizadora, que apela para a educação moral em valores nas escolas. A pobreza, assim, acaba sendo vista somente pelo viés educacional, ficando mascarada toda a sua complexidade como questão social, política e econômica. Essas representações são uma forma irresponsável de jogar para as escolas e seus(suas) mestres(as) a solução de um problema produzido nesses contextos sociais, políticos e econômicos, ou seja, muito além do ambiente escolar.

 
--
 



 

De outro lado, é tarefa árdua para as escolas e seus(suas) gestores(as) não se deixarem contaminar por essas representações sociais dos(as) pobres. Difícil não ver crianças, adolescentes e jovens pobres como seres destituídos de valores, preguiçosos, sem dedicação ao estudo, indisciplinados e até violentos. As representações sociais pesam sobre as representações pedagógicas.

Sendo assim, é aconselhável dedicar dias de estudo e de oficinas para aprofundar a reflexão sobre como as escolas, os currículos e o material didático representam os(as) estudantes pobres, suas famílias e comunidades.

Sempre que predomina uma visão moralista dos graves problemas sociais, tende-se a apelar para programas socioeducativos, para as escolas e seus(suas) profissionais. Assim, uma pergunta obrigatória se coloca: por que as escolas não reagem, e continuam aceitando essa sublime missão de salvar os(as) pobres? Podemos respondê-la da seguinte maneira: as formas de pensar a pobreza como questão moral não são apenas da sociedade, da mídia e dos programas socioeducativos, mas são também das escolas e da cultura pedagógica demasiadamente moralizantes.

A ênfase nessa interpretação moralista da pobreza traz consequências para a escolarização dos(as) pobres. Isso ocorre porque os esforços escolares não priorizam garantir seu direito ao conhecimento, mas sua moralização. Logo, os(as) estudantes não receberão aprendizados sobre as ciências e tecnologias que possam vir a libertá-los(as) do ciclo vicioso da pobreza, mas apenas lhes será dado o domínio de habilidades mais elementares de ciências e a alfabetização na idade determinada como "certa" pelo sistema educacional. Enquanto a pobreza for pensada como uma questão moral, os currículos para os(as) pobres continuarão sendo pensados para moralizá-los(as), não para garantir o direito deles(as) ao conhecimento, às ciências e às tecnologias. Serão currículos pobres de conhecimentos e repletos de bons conselhos morais de esforço, trabalho, dedicação e disciplina.

 

Um entendimento inicial sobre currículo

Aqui, o currículo deve ser entendido, conforme as palavras de Moreira e Silva (1999, p. 191), como o "o conjunto de todas as experiências de conhecimento proporcionadas aos/às estudantes – que está no centro da atividade educacional. O currículo constitui o núcleo do processo institucionalizado de educação".

-Vídeo-
 

 

 

Em realidade, a caracterização dos(as) pobres como inferiores em moralidade, cultura e civilização tem sido uma justificativa histórica para hierarquizar etnias, raças, locais de origem e, desse modo, alocá-los(as) nas posições mais baixas da ordem social, econômica, política e cultural (ARROYO, 2013). A empreitada catequética-educativa colonizadora e até republicana se orienta nessa visão de inferioridade moral, cultural, civilizatória dos Outros4 e no tratamento destes como inferiores, por serem diferentes. Persistem empreitadas antipedagógicas sempre que os(as) pobres – crianças, adolescentes – são pensados(as) como inferiores em valores e cultura.

Em vista disso, há uma questão importante que merece atenção durante os estudos: quais são as consequências, para as políticas e teorias educacionais, para os currículos, para a função social da escola e da docência, da insistência sobre o pensamento nesse papel moralizador dos(as) pobres, dos(as) diferentes, dos Outros? Será fácil reconhecer que essa visão dos Outros como carentes de valores tem levado a um empobrecimento da função social da escola, da docência, das políticas e teorias educacionais. Avançar para visões menos moralistas dos(as) educandos(as) pobres será uma saída para elevar a função social das escolas públicas e dos(as) seus(suas) profissionais. 

 

Pobres porque desqualificados(as) para o trabalho

Uma interpretação frequente da pobreza é aquela que afirma que as pessoas são pobres porque seriam desqualificadas para o trabalho5 e para as exigências do mercado. Perpetua-se a ideia de que os(as) pobres estão nessa condição por não trabalharem e não encontram trabalho porque não teriam a qualificação e a competência exigidas pelo mercado, cada vez mais seletivo. Logo, acabam no desemprego, no subemprego, no biscate informal ou explorando de maneira tradicional e improdutiva a terra e os recursos que possuem. Partindo dessa visão de pobreza, é fácil apelar para a escola e sua função de qualificar, desde a infância, o domínio de competências que tornem os(as) pobres empregáveis.

Críticas frequentes aos(às) pobres sustentam que eles(as) devem trabalhar – como se já não trabalhassem e fossem suficientemente explorados(as) – e assim terão renda; que, se receberem renda de uma bolsa, irão se tornar ainda mais preguiçosos(as) e não buscarão trabalho. Os programas e as políticas de combate à pobreza são condenados e entendidos como formas de manter os(as) pobres na preguiça, de reproduzir sua rejeição ao trabalho e de mantê-los(as) à margem do desenvolvimento.

Ao contrário do que uma visão preconceituosa pode sugerir, a condição de pobreza é geralmente acompanhada por uma vida de trabalho duro, muitas vezes insalubre e sem visibilidade, embora fundamental para o funcionamento
da sociedade.

Essa interpretação de que os(as) pobres são pobres porque não querem trabalhar parte de uma visão ingênua acerca dos processos sociais, econômicos e das relações políticas que regem o desenvolvimento econômico e a apropriação da riqueza, da renda do trabalho, sua concentração e sua apropriação nas relações de classe.

O exercício necessário para quem dedica-se a estudar a pobreza e as desigualdades sociais é aprofundar-se na reflexão sobre esse padrão de desenvolvimento concentrador da renda do trabalho e produtor da pobreza e da renda mínima de tantas famílias trabalhadoras. Das escolas e de seus(suas) profissionais, espera-se uma postura crítica perante essa relação entre escolarização dos(as) pobres e empregabilidade. Afinal, não podemos atribuir à escolarização, isoladamente, a tarefa de solucionar a questão da pobreza, pois isso seria desconsiderar as complexidades do sistema capitalista e suas crises.

Além disso, há outro importante dado que merece ser pensado: a relação entre padrão de trabalho e produção das desigualdades sociais, raciais, de gênero. Esse padrão de concentração, apropriação e expropriação de renda é um modelo de trabalho que continua racista, sexista, empurrando ao desemprego e aos empregos mais precarizados os coletivos sociais, étnico-raciais, de gênero, das periferias e dos campos. Esse padrão racial e sexista de trabalho continua produzindo milhões na pobreza extrema, cujos(as) filhos(as) estão no Programa Bolsa Família.

Nos cursos de formação pedagógica, de licenciatura e nas análises de políticas, é preciso dar maior centralidade ao entendimento sobre esse padrão racista e sexista de trabalho que é determinante na produção e reprodução da pobreza e das desigualdades. A que trabalhos incorporam-se, ao longo de nossa história, os grupos indígenas, quilombolas, negros, camponeses, ribeirinhos e as mulheres? Que participação esses grupos recebem da renda do trabalho? Por que essa persistente relação entre pobreza e desigualdades sociais, étnicas, raciais, de gênero? A escola tem capacidade de quebrar esse padrão segregador de trabalho por meio da escolarização de todos(as) os(as) pobres? Essas são questões que advêm da presença massiva dos(as) pobres nas escolas e que exigem posturas críticas sobre a relação entre superação da pobreza e escolarização para a empregabilidade.